15 fevereiro 2009

Ideias...!


"Há um tempo em que as ideias nos tiranizam, em que não passamos de uma vítima infeliz dos pensamentos do outro. Esta “posse” por outro parece ocorrer em períodos de despersonalização, quando os “eus” antagónicos se descolam, por assim dizer. Normalmente, somos impenetráveis às ideias; elas vêm e vão, são aceitas ou rejeitadas, vestidas como camisas e despidas como peúgas sujas. Mas naqueles períodos a que chamamos crises, quando a mente se fende e estilhaça como um diamante sob as investidas de um malho, as ideias inocentes de um sonhador agarram-se, fixam-se nas fissuras do cérebro, e, por qualquer subtil processo de infiltração, provocam uma codificação definida e irrevogável da personalidade. Exteriormente, pouco muda, o indivíduo afectado não começa a comportar-se, de súbito, de modo diferente; pelo contrário, até pode comportar-se de modo mais “normal” do que antes. Esta normalidade aparente assume, de modo crescente, a característica de um dispositivo de protecção. Do disfarce superficial o indivíduo passa para o disfarce interior. A cada nova crise, porém, torna-se mais consciente de uma mudança que não é mudança e sim, antes, a intensificação de algo profundamente oculto nele. Agora, quando fecha os olhos, pode realmente ver-se. Já não é uma máscara: vê sem ver, para ser exacto. Visão sem vista, uma apreensão fluida de intangíveis: a fusão de vista e som - o coração da teia. Aí confluem as personalidades distantes que se esquivam ao contacto rude dos sentidos; aí se sobrepõem discretamente, em vivas e vibrantes harmonias, as notas dominantes do reconhecimento. Não se emprega nenhuma linguagem, não se delineiam quaisquer contornos."

("Sexus", Henri Miller)

1 comentário:

Anónimo disse...

Eis um dos autores proibitivos – Henri Miller –talvez, porque nos tragam verdades duras, como esta: a necessidade de retirar a máscara, para reconhecer o rosto, a essência do ser. Aquilo que realmente somos e que nos faz sermos inteiros ao nos descobrirmos, em certos momentos com a mente partida em imensos estilhaços. O autor oferece-nos um caminho precioso para descobrir o “rosto” –a “codificação definida e irrevogável da personalidade” – “ as ideias inocentes de um sonhador”. De facto o sonho do ser humano devia resumir-se ao desejo da “apreensão fluida de inatingíveis”, à verdade do ser. Para isso é também importante a “vontade” em atingir e amar a verdade! “Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce” – diria o Fernando Pessoa, o Homem sonha o desejo e a vontade de Deus – sermos inteiros na verdade da nossa vida. BB